" Se o mundo tem uma opinião, não quer dizer que temos de aceitá-la. " ( Nir Barkat )
sexta-feira, 31 de julho de 2009
Além da distância
Carinhosamente, de Débora Andrade para Rafael Cotrim.
quarta-feira, 29 de julho de 2009
Afastamento provisório
Bailando na Noite - Ex-Família
2. Ex-família
- Vadia! Você vai se arrepender disso. – Gritou, assustadoramente, alto. Seu José estava nitidamente estressado, mesmo que estivesse dentro da casa e ninguém do lado de fora pudesse vê-lo. De repente quase todas as luzes das casas vizinhas se acenderam e não demoraria muito para que a casa de dona Maria se transformasse em um palco de um teatro, ou circo, que seja.
Agora, o medo encobria totalmente qualquer canto do rosto de Paula. Ela afastou-se de Marcos sem nem lembrar que quase o beijara e foi correndo em direção à sua casa. “Disso o quê?! Minha mãe sempre fez tudo o que esse cretino quis, deixava de ir às festas com suas amigas para ficar ouvindo ele criticar um jogo estúpido de futebol! Imbecil!”, pensava consigo mesma a dançarina. O seu anjo da guarda também disparara em direção a porta, sem entender o motivo de tudo aquilo, já que nada sobre a família dela havia sido levantado.
O único problema é que foi em vão. Antes que Paula conseguisse tocar a fechadura metálica da porta, dois disparos foram ouvidos. Quase que instantaneamente. Um barulho ainda mais alto que os gritos anteriores. Um barulho que significava mais do que dois tiros. O seu corpo do abdome para cima parecia ter se tornado mais denso, e suas pernas mais finas. Estava com problemas para sustentar seu peso. Agia em câmera lenta, depois do choque. Levou aproximadamente cinco segundos para ela conseguir empurrar a porta, agora, pesada que rangia ainda mais alto que sempre.
- Seu José matou a mulher?
- Que diabos está acontecendo aqui?
- Não se pode mais dormir nessa rua?
- Chega! – A voz, mesmo nessa circunstância era doce e aveludada para ela. – Todos quietos, por favor! Estou tentando falar com a polícia. – E a multidão, que apareceu quase que junto com os tiros, se aquietou. Paula não tinha tempo para perceber, mas se encantaria ainda mais pelo seu príncipe se soubesse o quanto ele estava preocupado com ela. Queria ter parte da situação em suas mãos para poder ajudar ao máximo. Mas estava, realmente, muito abalada para prestar atenção em outra coisa.
Enquanto todos olhavam assustados para a casa, Paula, agora, tinha a visão do inferno. Sua mãe deitada no chão com dois buracos, um na barriga, abaixo do umbigo e outro na coxa esquerda. O sangue estava espalhado por toda a parte e as lágrimas que saiam do rosto de dona Maria se chocavam com as da bailarina. Pouco importava se o sangue lhe encharcava, a dançarina queria vivenciar o último momento com sua melhor amiga.
- Mãe, eu estou aqui, mãe! Seu anjinho está aqui, mamãe. – Chorava muito, tanto que os seus olhos estavam de cor vermelho vivo.
- Meu amor. – Disse “Mazinha”, como Paula a chamava quando pequena, com dificuldade. Parecia que as palavras rasgavam-lhe a garganta e que se engasgava com o pouco ar que, ainda, conseguia respirar.
- Não fale, mãe. Não se esforce. Logo a ambulância e a polícia estarão aqui. – As lágrimas pareciam se acelerar cada vez mais para sair do rosto da dançarina. Enquanto dizia isso ela fitava os olhos de seu José. Estático, com a arma, ainda, apontada para a coxa esquerda de dona Maria. O ódio no olhar dela era tal que só por encará-lo a pistola pareceu pesar tanto que ele a deixou cair, mas manteve-se estático, com exceção desse movimento involuntário.
- Eu só queria te ver como baila... – O ar tinha parado de se movimentar em seus pulmões. E a hemorragia externa também já não podia mais ser controlada. Ela se foi. Foram dois tiros certeiros. Paula começou a chorar ainda mais. Beijou a testa de sua mãe e pensou alto, consigo mesma: “Ela só queria me ver como bailarina, e eu não pude dar isso a ela. Que bela filha eu sou.”. De repente sem nem perceber o que acontecera ao seu redor enquanto a pessoa que ela mais gostava do mundo morria em seus braços, Marcos segurou sua mão. Ela fitou seus olhos semicerrados tentando entender sua expressão enquanto a via chorar mais do que o imaginável. Sem sucesso. Não conseguia saber o que se passava pela sua cabeça. Ele lhe beijou a testa e, pausadamente, lhe disse:
- Sinto muito, meu amor. Sinto ... – As lágrimas que saiam dos olhos de Paula o fez beijar seu rosto de imediato e as palavras que ele tinha pensado em dizer, agora pareciam pouco. A bailarina retribuiu o abraço da, agora, única pessoa que ela, realmente, amava.
Por alguns segundos, Paula ficou aninhada nos braços de Marcos. Tentando entender o porquê de tudo aquilo estar acontecendo com ela, e não com outra pessoa qualquer. O barulho da ambulância já podia ser ouvido e dois minutos depois, o da polícia também.
Enquanto o corpo era retirado pela ambulância e os policiais saiam da viatura, um ataque de nervos fez com que a bailarina se soltasse dos braços de seu anjo protetor e corresse em direção a seu José. Foram murros fortes em seu peito e ainda assim, ele se via estático.
- Porque você fez isso comigo?! – As lágrimas desciam como se fossem pedras de gelo, tentando, sem sucesso, congelar a sua face – Você não tem o direito de interferir dessa forma em minha vida. – As suas forças que já não eram muitas foram se esgotando ainda mais e os murros começaram a se transformar em tapas. – Quem é você afinal? Não pode ser meu pai. Não ... – Antes que ela terminasse a frase, Marcos a abraçou por trás e afastou-a do assassino. Tentava controlá-la, mas infelizmente não conseguia. A raiva a dominava compulsivamente. Paula não percebera que os policiais já estavam atrás do seu pai, essa palavra, ainda mais agora, nunca existira para a bailarina, algemando-o. Um deles disse:
- Você está preso por homicídio doloso, com intenção de matar, e porte ilegal de arma. Sem contar que estamos indiciando o senhor por algumas marcas de espancamento na cintura e no rosto de sua mulher que devem ter sido causados antes desse incidente.
Enquanto o outro policial apertava, forte, a mão de Marcos e conversava sobre os depoimentos que deveriam ser prestados, seu José passava ao lado de Paula, cabisbaixo. Ela ergueu o rosto dele com suas próprias mãos e virou-lhe para encará-la. Fitou seus olhos vazios e negros com tanto nojo que sentiu vontade de cuspir nele. Ela o fez. Ainda estático seu pai não reagira. Ele abaixou novamente a cabeça e seguiu em direção a viatura.
- Obrigado pela rapidez, seu guarda. – Disse Marcos em frente à casa da dançarina. Como sempre, educado.
- Não há de quê. Nós não gostamos de deixar marginais como esse por aí. – Acenou e deu de costas para a multidão que cochichava do começo ao fim da tragédia. – Até logo. – Gritou ele ao entrar no carro e disparar em direção à delegacia mais próxima.
O anjo da bailarina pediu, educadamente, a todos que estavam ali parados para se retirar. Parecia que ele tinha o dom de fazer com que as pessoas façam o que ele quer. Todos se retiraram, lentamente, mas se retiraram. E então Marcos voltou para sua princesa que agora estava em pedaços.
- Vamos, meu anjo. Pode dormir lá em casa, se quiser. Até que tudo se ajeite. Cuidarei do... – Com receio do impacto que a continuação pudesse causar em Paula ele achou melhor falar disso depois. – Cuidarei de tudo. Mas por enquanto é melhor que você fique longe do seu castelo. – Ela assentiu sem dizer nada e caminhava, com uma expressão mais vazia do que se pode imaginar, sem rumo, sem vontade de viver, em direção ao carro de Marcos. – Vou pegar umas roupas suas e colocar numa mala que tenho no carro, vai precisar delas. – A bailarina parecia não ouvir nada a não ser suas lágrimas rasgando sua pele de tanto frio que liberavam ao entrar em contato com sua pele que parecia estar em combustão pela raiva que agora, ainda mais, sentia do seu... Pai.
Marcos entrou no seu carro e Paula estava ali, fitando o infinito. Seus olhos não pareciam ter, sequer, um foco. Então ele achou melhor não dizer nada. Beijou a testa da bailarina e seguiu viagem, rumo a sua casa. Não se esquecera de nada. Trancou a casa, apagou todas as luzes e guardou a chave na mala que estava levando as roupas dela. Não aconteceu nada de mais até a casa do anjo protetor. Nenhuma palavra foi dita. Com exceção dos murmúrios de raiva que saiam quase que automaticamente, entre os soluços do choro, da boca de Paula. Mas nada audível. Ela ainda não tinha parado para pensar, quão bom ele estava sendo. Não mesmo. Não tinha tempo para isso. Estava muito ocupada imaginando o quanto sua vida seria ruim, com exceção dele, nos próximos dias, semanas, meses e até anos. Ela não conseguia se enxergar sem sua mãe. Não...
Paula só se deu conta que passou um mês no dia em que Marcos pronunciou durante uma conversa no almoço:
- Faz um mês que sua mãe se foi, meu anjo. – Uma pausa teve de ser feita. – Se quiser, hoje à tarde peço uma folga e vamos ao cemitério. – Ele olhava atentamente para os olhos da bailarina tentando entender o que passava pela sua cabeça.
- Claro amor. – Sua voz estava vazia e não havia um resquício sequer de nenhum sentimento, nenhum mesmo. Seus olhos, agora, focaram-se nos de Marcos. E então ele se assustou com o que o encontro de seus olhares causou recuando para trás. O anjo protetor de Paula conseguia enxergar a solidão dela em seus olhos, estava nítido. – Umas cinco horas a gente pode passar lá então. – Só agora ela percebera que ele tinha se afastado um pouco. – Algo errado com a minha maquiagem? – Ela riu sem entender o motivo do espanto, mas não interessava muito. Achava que era uma brincadeira ou algo do gênero.
- Não. Nada de errado. A propósito, você está linda. – Disse ele tentando não deixar sua voz transparecer o espanto de agora a pouco. – Então está combinado. As cinco nós vamos. – Os olhos de Paula já pareciam melhor e ele se sentiu menos incomodado. Voltou para a posição original.
Assentiu com um sussurro. Levantaram-se e foram lavar os pratos, como era segunda ele lava e ela enxuga e guarda. Um trato feito anteriormente entre eles que estava dando certo e resolveram manter. Paula foi tomar um banho enquanto Marcos ligava para seu trabalho e pedia uma tarde de folga. Não seria muito difícil ele conseguir já que era um funcionário exemplar. Conseguiu. O patrão, além de tudo, era seu amigo. E entendeu o motivo.
Enquanto as gotas quentes de água se chocavam contra a pele de Paula ela resolveu pensar um pouco. Só agora que percebera o quanto Marcos era bom para ela. Desde o dia em que sua mãe morreu a vaga no “Freire” fora repassada para uma ex-colega de colégio sua, e o seu anjo protetor não se importava em bancar a despesa da casa já que o seu salário era estável e considerável. Até hoje, depois daquele incidente do carro, suas bocas nunca estiveram tão próximas. Esse mês que eles passaram juntos foi como se a vida não existisse. As coisas aconteciam sem sentido para ela. Enquanto ele se esforçava para que tudo corresse da melhor forma possível. Marcos se importava em beijá-la, ela sabia disso. Só que nunca havia tentado. Esperando que ela se recuperasse. Ou seja, todo esse tempo ele fez tudo por ela enquanto não recebia basicamente nada em troca. Pelo menos ela agradecia todos os dias em suas orações pelo anjo que recebeu de presente. Ainda não sabia se estava pronta para dar tudo o que ele merece, então achou melhor não falar nada com ele. Já estava se enxugando quando terminou de pensar sobre sua vida, ou a falta dela. Passou por Marcos na sala e ele, educado como sempre, não a olhou passando embrulhada na toalha. Ela fazia questão de olhar pelo canto do olho e se encantava com cada pequeno gesto de amor que ele demonstrava.
Já vestida, sentara ao lado dele no sofá enquanto assistia à televisão. Adorava fazer isso. E sempre que tinha oportunidade ela não deixava escapar. Aninhava-se em seu peito como um pássaro novo em seu ninho. Ele se sentia maior com isso. Mas não deixava tão evidente. Não queria que Paula fizesse aquilo por obrigação. Ainda assim, não resistia aos seus cabelos negros e se via na necessidade de cheirá-los e passar a mão entre os cachos soltos. A vontade que ele tinha de beijá-la era muito forte. Mas sabia que valeria a pena esperar cada segundo. A intensidade do que acontecerá aumenta a cada segundo, bem como o desejo. Cochilaram. Prevenido como sempre, o celular de Marcos já estava programado. Às quatro e trinta ambos se olham e riem com o barulho do despertador.
- Se não sou eu, heim minha pequena?! – E soltou o sorriso preferido dela.
- É! Se não é você... – A conversa que ela teve consigo mesma enquanto tomava banho martelava em sua cabeça. E, agora, ela se incomodava em perceber o quão ingrata ela fora nesse último mês. – Vamos nos arrumar. – Disse ela encarando-o.
- Primeiro as damas. – Retrucou, ele, indicando o quarto. Afinal, só havia um. Durante todo esse mês Marcos dormira no sofá. Mais uma vez uma decepção pessoal toma conta de Paula enquanto se dirigia ao quarto.
Enquanto ela se ajeitava no quarto, ele preparava um lanche na cozinha. O cômodo era simples, mas esbanjava simpatia. Uma mesinha recuada no canto direito tinha espaço para quatro cadeiras. Uma geladeira de pouco mais de três anos. Armários cada um com sua etiqueta. Cereais. Talheres. Pratos. Panelas. Copos. Utensílios. Do canto esquerdo, ao lado da janela que tinha um horizonte bem próximo já que havia um prédio mais alto ao lado, estava um fogão de quatro bocas e de cor branca assim como todos os outros móveis. Paula dava conta de deixar toda a casa limpa nas quartas. Fazendo com que a cozinha singela esteja, também, limpa. Marcos não preparou nada de mais. Leite quente com chocolate em pó e pães fatiados com manteiga. Mas todos esses pequenos gestos que antes não incitavam a bailarina agora a incomodava profundamente.
Ele foi se arrumar, o que não demorava nada, e pediu para que Paula tirasse o leite do fogo. Lancharam meio calados, o que não era comum, e foram a pé para o cemitério já que era só a dois quarteirões dali. No meio do caminho pararam na floricultura “Flores de um jardim” e compraram algumas rosas vermelhas. Marcos como sempre se responsabilizou pela conta. Logo depois já caminhavam de mãos dadas. A aparência pálida dele combinava estupidamente bem com a negritude dela. E as pessoas continuavam a se impressionar com isso. Mas nada que causasse desconforto, o casal já estava, realmente, acostumado. Era sempre assim.
O “Cemitério Jardim Divino” era particular e, mais uma vez, Paula se sentira incomodada ao ver a placa. Com seu salário mínimo nunca seria capaz de dar o conforto que sua mãe, realmente, mereceria após a morte. E mais uma vez foi Marcos quem mudou a sua vida e mais uma vez para melhor. A agonia era forte. Mas de algum jeito ou de outro ela ia recompensá-lo. Tempo é o que não falta, pensou a bailarina.
Chegaram à frente do túmulo e Marcos, agora, apertava ainda mais forte a mão de Paula. Era logo um dos primeiros e o local não parecia nada triste. Era um misto de verde da grama com cinza do granito do piso que revestia as passarelas que davam acesso aos túmulos. Várias árvores assumiam lugares importantes. Imponentes. Passaram-se dez minutos que a bailarina estava ali, se lamentando. No começo o seu anjo estava agachado ao seu lado, aconselhando-a. Mas ele achou melhor dar um tempo para ela pensar sozinha. De repente Marcos, que estava prestando atenção em uma árvore na entrada do cemitério, se vira e sua reação não é das melhores. Ele recua um pouco. As flores caem no chão e algumas pétalas se soltam, se arrastam para longe...
terça-feira, 28 de julho de 2009
Aos meus, prezados, leitores
segunda-feira, 27 de julho de 2009
Um pouco de mim
Estou solteiro a algum tempo.
Intensidade
domingo, 26 de julho de 2009
Leitura no Bosque
sábado, 25 de julho de 2009
Borboleta do destino
sexta-feira, 24 de julho de 2009
Waiting
Ainda assim, esperarei.
quinta-feira, 23 de julho de 2009
Quem canta seus males espanta
Depois de acordar.
terça-feira, 21 de julho de 2009
Bailando na Noite - A vida é dura
1. A vida é dura
“Tente no próximo teste.” Era essa uma das frases que Paula ouvia quase todas às vezes que tentava entrar para o grupo de bailarinas profissionais do teatro Amsterdã em São Paulo. Virava-se, sempre com raiva do diretor, e voltava para casa cansada depois de uma longa rotina no seu trabalho de atendente num bar da Avenida São João, Freire era o nome do estabelecimento.
Ao chegar em casa, muitas vezes, Paula encontrara seu pai embriagado e sua mãe chorando em outro cômodo que não o mesmo de seu José. Era uma vida difícil, todos eram negros e sentiam na pele o preconceito que o brasileiro disfarça muito bem. Beijava sua mãe e sempre sentia um frio trazido pelas lágrimas geladas que do rosto da mesma saíam. Como conversar com Maria, sua mãe, já não dava mais certo, Paula se encaminhava diretamente ao banheiro cujo chuveiro era quebrado, o que não fazia mal quando se tratava de um dia quente, o problema era o inverno.
De banho tomado Paula, sempre que seu pai não estava por perto, tentava assistir à televisão, mas o maior problema é que normalmente o som que se sobressaía era o de tapas e gritos. Sentia-se entediada e angustiada ao mesmo tempo, por isso saía de casa sem rumo várias vezes.
Era numa praça solitária da zona Sul que Paula se sentia a vontade para ensaiar, só com a música imaginária, alguns passos de sua coreografia infalível.
Ao chegar à Praça José de Melo Neto ela encarou o palco e desfilou até lá, onze passos impecáveis, era tudo friamente calculado pela astuta bailarina negra. Sentou-se de forma magistral como um cisne que repousa sob as águas de um rio. Contara até três e juntamente com os ruídos das músicas que saíam de sua cabeça vieram os primeiros passos. A perna direita levantada até a altura da cabeça e os braços apontavam para o céu como se algo muito importante tivesse sido encontrado. Era perfeita, sem falha nenhuma. Após alguns minutos de treino percebera aplausos fortes e sinceros vindos de um único espectador que prestara atenção do início até o término da coreografia.
Caminhava vagarosamente com um terno de cor preta bem apagada devido ao excesso de vezes que fora lavado e um sapato de couro preto mal engraxado.
- Nunca vi alguém dançando Ballo della Regina tão bem quanto você o fez. – Disse ele com uma voz que parecia estremecer todos os órgãos da bailarina da noite. Paula com uma voz nitidamente trêmula revidou.
- Como soube que estava ensaiando esta música se não tem nenhum som por aqui? – Sorrindo pelo nervosismo explícito de Paula ele estendeu sua mão e disse pausadamente.
- Meu nome é Marcos, prazer. A respeito da “adivinhação”, eu como fã assumido da música clássica não pude deixar de sentir o ritmo bem distribuído em seus gestos doces de uma bailarina bastante experiente pela pouca idade que aparenta ter. – Ainda com menos jeito que antes, Paula preferiu não questionar o saber musical de Marcos.
- Meu nome é Paula e o prazer é todo meu. – Reparando atentamente no sorriso de Marcos, percebera que era tão lindo quanto qualquer homem desses famosos que tem por aí.
- Se não se importa, gostaria de te convidar a ir a um restaurante que está a duas quadras daqui. Posso te levar de carro, ou se preferir podemos ir andando, já que é tão perto. – Surpresa com a proposta mais do que inesperada de Marcos, Paula, gaguejando, retrucou.
- Você pensa que só por ser pobre e negra sou dessas mulheres fáceis? Pode ir se afastando, mocinho. Sua bela aparência e seu dinheiro não são suficientes para me convencer a sair contigo. Passar bem! – Deu-lhe as costas e saiu batendo o pé firmemente no chão como se estivesse com muita raiva.
- Se meu caráter for importante para te convencer é só me procurar. Estarei sempre te assistindo no mesmo horário e local, boa noite. – Paula ouvira essa última fala ecoando em seus ouvidos durante longos minutos que se arrastavam como se fossem horas. Chegou em casa e para seu alívio encontrara sua mãe e seu pai dormindo. O tão desejado sossego só podia ser sentido nessas horas.
Deitou em seu quarto com o travesseiro sobre a cabeça e se sentira arrependida do que fizera. “Idiota! Imbecil! A única pessoa que se interessa por você aparece como um anjo em sua vida e você se parece com o demônio querendo assustá-la.”. Pensava sozinha. Era um pensamento alto que conseguia tirar toda sua concentração e vontade de dormir. Uma agonia forte, mas ao mesmo tempo uma alegria ainda mais imponente tomava conta da bailarina da noite. Estava agoniada por ter pensado que fizera a coisa errada ao refutar o convite que, agora, lhe parecia irrecusável. E ao mesmo tempo se sentira feliz por sentir que alguém, hoje, realmente se interessava por ela.
Ao se passar duas, longas, horas, Paula, conseguiu dormir. Só conseguiu descansar por saber que seu trabalho não pararia devido aos seus problemas ou soluções, quem sabe.
Dormira por pouco mais de cinco horas e já estava de pé às seis da manhã, para que, pontualmente, às sete estivesse com um sorriso falso estampado no rosto e a frase: “Obrigada, a família Freire agradece.”, na ponta da língua. Família injusta! Pensava sempre que se lembrava dessa mísera frase que repetia milhares de vezes ao dia. O dono era um descendente de alemão gordo que, sempre, a chamava de “negrinha” e a dona uma mulher loira insuportável que não fazia nada além de gastar o dinheiro do marido. Todos os outros que trabalhavam com Paula eram pobres e se contentavam com o mísero salário mínimo que recebiam.
Estava trabalhando normalmente quando de repente, Peter, um rapaz que trabalha como garçom no estabelecimento chama a sua atenção para algo que estava atrás dela. Ao se virar para trás, ouve o estridente barulho da porta se abrindo. Vira para o cliente, inconscientemente, e diz algo semelhante a: “Bem vindo ao estabelecimento da família Freire, em que posso servi-lo?”, só que na medida em que as palavras saíam automaticamente da sua boca, a imagem que seus olhos observavam foi, lentamente, se decifrando em memórias. Marcos causara de novo, em Paula, a sensação de espanto. Nunca errara em um atendimento e ele logo se adiantou para que ela não gaguejasse mais e tornasse ainda mais perceptível o seu nervosismo, afinal, não queria comprometer o trabalho da moça.
- Um maço de cigarros, por favor?! – Disse ele como se não conhecesse a atendente negra. Ela estava totalmente confusa, será que Marcos já tinha se esquecido dela?!
- Pois não, senhor. – Deu novamente as costas para a porta de entrada e antes mesmo de entregar o maço à Marcos ele estendera a mão com uma nota de dois reais bastante amassada.
- Obrigado, senhorita. Passar bem. – Enquanto seus sonhos se esmoreciam e saíam pela porta da frente Paula disse, dessa vez, sem gaguejar.
- Obrigada, a família Freire agradece. – Lágrimas fluíam como água em um rio. Só que ao desdobrar, tão lentamente quanto à porta que se fechava, a cédula ela percebeu que houvera uma folha de caderno bem amarrotada amassada juntamente com a nota de dois reais, e nela estava escrito:
“Pequena Paula, o mundo pode não ser totalmente nosso, mas o meu tornar-se-ia muito mais completo se você pudesse jantar comigo hoje à noite. Não atrapalharei seu treino noturno, e estarei te esperando sentado no banco ao lado de onde você se exercita. Para que tudo isso aconteça basta acenar para mim, estou ao lado do bar que você trabalha...
PS: Você fica linda de uniforme.”
Essas palavras soavam como uma bomba no coração da bailarina negra. Era como se ela fosse a mulher mais feliz do mundo. Sem dar satisfações nem mesmo ao seu chefe foi correndo em direção a porta. Ao acenar para Marcos ele deu um breve sorriso que dizia algo como: “Vou te fazer muito feliz.”.
Ao voltar para o caixa, com um sorriso estampado no rosto, teve de se desculpar com seu chefe que tinha tirado o dia para atazanar a sua vida. Mas nada, nada mesmo, poderia fazer com que ela se sentisse menor hoje, muito pelo contrário, as coisas que o patrão disse a ela soaram como elogios doces e sinceros, e pela primeira vez ela não o respondeu com ignorância. Karl, dono do bar, ao receber uma resposta delicada percebera que não mais estava incomodando Paula e agora quem sofria com seus “elogios doces e sinceros” era Peter.
Ao terminar o expediente, a única a ter fôlego para ir embora correndo era a dançarina. Chegou em casa mais rápido que o normal e foi logo em direção ao banheiro, sem nem lembrar o beijo maternal. Arrumou-se ainda mais depressa sem notar que a casa estava mais vazia que o normal. Só quando estava a caminho da praça que percebeu não ter encontrado nem sua mãe, nem muito menos seu pai. Mas continuou andando lembrando que nada poderia estragar aquela noite tão maravilhosa.
Inicialmente não havia nada nem ninguém na Praça José de Melo Neto e ela como sempre não se sentia sozinha, muito pelo contrário Paula podia ouvir os aplausos que estrondavam o teatro. Iria começar agora sua apresentação, todos se aquietaram e sua alma já estava no último estado de primor. Onze passos impecáveis e lá estava ela no centro do palco. Suas pernas se esticavam como se fossem molas e funcionavam como os ponteiros do relógio, em perfeita sintonia. Seus saltos altos e braços esguios faziam com que a bailarina parecesse estar voando. Era realmente uma atleta do alto escalão. Seus cabelos mexiam em conjunto, para cima e para baixo, suavemente, como folhas que caem durante o outono. Suas coreografias eram, realmente, perfeitas.
A dançarina da noite não gostava de ensaiar a mesma coreografia da noite passada só que essa merecia um pouco mais de atenção, para que ficasse, para sempre, na memória, guardada. De repente, no auge da música, no momento em que suas pernas fazem cento e oitenta graus perfeitos, a bailarina escuta três aplausos perfeitamente distribuídos em um intervalo de, exatos, três segundos. Algo que ao mesmo tempo foi meticulosamente calculado e ridiculamente espontâneo.
- Ainda melhor que na outra noite – Disse Marcos espantado com a beleza de Paula.
- São seus olhos... – Retrucou a bailarina, constrangida. Enquanto isso ele sorria e se preparava para a próxima resposta.
- Como a minha carta deixava bem claro que se quisesse sair comigo só era preciso acenar e você o fez, vamos?! – Perguntou ele com a certeza de que teria um sim como resposta.
- Estava esperando por isso. – Tentava passar uma segurança que não tinha ao responder com tanta veemência à pergunta do seu único admirador. E pelo que parece ele percebeu.
- Não precisa fingir ser algo que você não é! Venho te observando há dias e sei que está insegura, ainda, em relação a mim. – Deixou bem claro que estava sendo sincero.
- É. – Espantada com a beleza e respostas do rapaz as palavras começaram a sumir.
- Melhor conversarmos no restaurante, não acha? – Assentiu Paula com um leve movimento, vertical, de cabeça.
Sem saber aonde enfiar as mãos a bailarina seguia sempre observando os passos de Marcos, já que não sabia onde estava seu carro. Durante todo o caminho, da praça ao carro, eles não proferiram muitas palavras. Ao chegar na beirada da calçada se encontrava um carro simples, mas de muito bom gosto. Tinha a cor azulada, bem escura. E os vidros eram tão pretos que mal se enxergava o que se passava lá dentro.
Durante os sete minutos que se passaram até chegar ao restaurante o silêncio parecia tomar conta da conversa. Mas foi no Dolce Vita que as coisas, realmente, começaram a fluir. Era um restaurante tipicamente italiano e a carta de vinhos foi logo requisitada por Marcos.
- E então minha princesa, gostaria de tomar um vinho suave ou seco? Pra combinar com sua pele doce eu arriscaria um suave, mas a escolha é sua. – Encantada, cada vez mais, com a beleza do seu admirador, respondeu sem pressa nenhuma.
- Deixarei que você faça a escolha dos vinhos. Creio que saberá fazer a melhor escolha para nós. – Percebendo que Paula estava se sentindo mais a vontade ele ficava cada vez mais absorto.
- Espere um momento então, sim? – Com uma troca de olhares entre Marcos e o atendente, foram atendidos em alguns segundos. – Uma taça de vinho seco da safra mais antiga que tiver, e um vinho suave, também da sua safra mais antiga. Por favor. – Deu-lhe as costas o garçom de nome André, como estava escrito em seu uniforme, e foi logo à adega.
Passaram-se duas horas de conversa e sabiam basicamente tudo, um do outro. O que mais intrigava à bailarina era que Marcos nunca dissera nada sobre sua família. Como ela também não falava muito sobre a sua, deixou quieto.
Na hora de encerrar a conta, isso já era previsível, Marcos se responsabilizou pelo dinheiro. Todos os clientes do restaurante, sem restrições, olharam para o casal enquanto traçavam o percurso de volta à saída do restaurante. Era, mesmo, diferente. Um rosto masculino pálido, com exceção de alguns centímetros, lado a lado com um rosto feminino negro. A expressão “Os opostos se atraem” caia como uma luva para o par.
Agora o tempo já não se importava mais em voar, e quando se pegou em frente à sua rua ela se espantara.
- Vo-vo-cê não está andando rápido demais? – Parecia mais espantada do que, realmente, deveria.
- Exatos dezessete minutos que saímos do restaurante, Paulinha. – Ele não se incomodou com o susto de Paula. Muito pelo contrário, percebeu que ela não vira o tempo passar e lhe abriu um largo sorriso, o preferido da bailarina. – Se não se importa, gostaria que me falasse onde é a sua casa, exatamente, ainda não te segui até ela. – Um sorriso, agora, mútuo.
- É essa aqui! – Cantou. Ainda inconformada de como os ponteiros do relógio aceleraram tanto desde a última vez que os vira.
- Simpática! Mas, ainda, acho que você merecia um castelo, no mínimo. – Disse ele com os olhos fitando as bochechas, agora, coradas de Paula.
- Só não te convido para entrar porque meus pais já devem estar dormindo, então não seria muito agradável. – Assim que a última palavra saiu de sua boca ela recordara que não havia visto seus pais ao voltar do trabalho e uma leve expressão de pânico se apossou do seu rosto. Franziu a testa e tentava procurar por alguma luz acesa em qualquer cômodo, desprezando a distância que se encontrava da casa.
- Não se incomode com isso. Qualquer noite contigo já é muito para quem nunca teve nenhum segundo ao teu lado. – Ao observar os olhos atentos de Paula, que agora se perderam nas estrelas, ele, com uma voz preocupada questionou. - Tem alguma coisa errada, meu anjo? – A voz dele era doce e aveludada para os ouvidos da bailarina. E por mais preocupada que estivera, aquelas palavras amenizaram todos os seus medos e hipóteses assustadoras que vinha sugerindo para si.
- Não, não! – Negou ela contra a sua vontade, não queria mentir para ele, mas também não tinha certeza de nada. – Tudo bem. Só queria conferir se não havia ninguém acordado.
Seus olhos tremiam, e quando olhou para o lado os lábios dele estavam a milímetros dos seus. Paula, de imediato, fechou os olhos e, automaticamente, se aproximava tão lentamente quanto o vento que arrastava folhas secas que estavam no chão. De repente, um grito ensurdecedor faz com que ambos recuem assustados.
Amor eterno
Furiosa, entrou pela porta sem sequer bater.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
João e Maria: I
Palpável,
domingo, 19 de julho de 2009
Verdade absoluta
sábado, 18 de julho de 2009
João
Passeava pela rua cabisbaixo e pensativo até que me veio um rapaz jovem e sorridente que, sem querer, se esbarrou em mim. Conhecemo-nos naquele instante e uma semana depois éramos amigos fiéis. O tal jovem me inspirava tanta sabedoria que me sentira mais forte e até mais sábio ao teu lado. Não consigo entender o que fez com que eu me sentisse mais completo junto a ele.
Conversávamos sobre todos os momentos de nossas vidas, e discutíamos até sobre os relacionamentos amorosos, que tínhamos com as mulheres, entre nós. Com certeza, nascemos separados, mas éramos irmãos.
Até que um dia olhando-me no espelho percebi que o reflexo do belo rapaz não se fazia presente ali. Comecei a me indagar do que poderia estar acontecendo, se eu estava ficando louco ou quem sabe ele era um vampiro desses que aparecem e filmes e não apresentam imagens em frente ao espelho. Comecei uma busca incansável por qualquer resquício de sangue em seus objetos pessoais e simplesmente descartei a hipótese de estar ficando louco.
Passaram-se dias e não consegui achar marcas de sangue em suas roupas ou em quaisquer coisas suas. Até que resolvi discutir sobre isso com ele. Marquei para jantarmos em um restaurante a sós, ele e eu.
Antes de irmos ao restaurante João, o nome que lhe fora dado e que por acaso é o meu segundo nome, começou a me questionar sobre o que conversaríamos e eu ficava cada vez mais intrigado com essa história sem pé nem reflexo.
Chegou então o tão esperado dia e lá estava ele na mesa 41(quarenta e um) do restaurante Bullevar, que faz esquina com a Avenida São José. A propósito, o meu restaurante predileto. Então sem mais delongas decidi que depois do cumprimento formal, começaria logo a discutir sobre os reflexos no espelho ou a falta deles.
Como num passe de mágica ao apertar a mão de João ele começou a sumir em frente a mim. Paralisado eu fiquei por mais de trinta minutos com a mão estendida sem, realmente, entender o porquê da situação. Até que o garçom, muito gentil por sinal, estendeu-me a mão e me pôs a sentar. Perguntei-o se tinha visto um rapaz alto, charmoso e sorridente sentar nessa mesa e ele me respondera que de pessoas sentadas naquela mesa nesse dia só havia eu. Agradeci o rapaz e pedi uma água dessas com gás para aliviar a cabeça e pra não ter que sair de um restaurante tão garboso sem pedir nada. Dei uma generosa gorjeta a Marcelo, o gentil garçom, e fui para casa sem ter o que falar ou fazer.
Minha cabeça já não era mais a mesma. Após ter visto um rapaz sem reflexo, vi o mesmo rapaz sumir em frente a mim. Comecei a pensar o que faria da minha vida se estivesse ficando louco. Um homem novo de vinte e seis anos, que não aparenta nem mesmo vinte, sem mulher nem filhos. Só com um trabalho comum e com um salário de menos de três mil reais por mês. Meu Deus, o que será de mim. Pensando e sofrendo caminhava novamente cabisbaixo a meu apartamento.
Com todas essas dúvidas e problemas resolvi me deitar um pouco para aliviar o stress. Virei para o lado e apertei o travesseiro como se nunca tivesse visto ou tocado algo parecido. Dormi tranquilamente, até as duas da manhã, quando acordei com João batendo à porta.
Espere um pouco! João?! Mas o danado não tinha sumido na minha frente?! Resolvi conferir se a voz que ouvira era realmente a do desgraçado. Olhando pelas entranhas do olho mágico reconheci aquele sorriso que, agora, começava a me irritar profundamente. Não sabia o que fazer até que de repente a porta se abriu pelo lado de fora, sendo que eu tinha a certeza de que a tinha trancado por dentro.
João então veio me abraçar fortemente como se tivesse ficado muito tempo sem me ver. Falava que estava com saudade. Agora que eu não conseguia entender mais nada.
Sentou-se no sofá e perguntou-me se havia algum chá ou café quente para tomar, eu respondi indignado que ninguém faz café e muito menos chá às duas da manhã. Ele então me respondeu que tinha se atrapalhado com os fusos horários, afinal estava em Londres. Lugar que eu sempre sonhei em ir e até abri uma conta poupança pra juntar uns trocados e ver se um dia eu consigo visitar tão estimado lugar.
Continuando com sua história João me contava tudo sobre a viagem, e contou-me também que lá havia comprado um carro, um Porsche daqueles bem caros, que por mais uma coincidência eu sempre sonhei em ter.
Ainda assim João ficou horas e horas monologando até que percebeu minhas fisgadas de sono. Estava, literalmente, dormindo em pé. Resolveu, então, ir embora. Despedimo-nos informalmente - um aperto de mão e um abraço, nada mais - e eu que já não estava entendendo mais nada. Me joguei novamente na cama e perdi o horário do serviço, de tanto sono. Afinal, João havia saído de casa às quatro e meia da manhã.
Depois de ouvir um belo de um sermão do diretor geral da empresa resolvi comparecer ao consultório de um renomado psicólogo da cidade. Ele sem mais nem menos me disse que eu estava ficando louco e me passou vários desses remédios que só os loucos, realmente loucos, tomam.
Resolvi então acreditar no que ele disse e fui direto pra farmácia comprar meus remédios de insanidade. Ao chegar em frente ao caixa repassei à moça, bela moça, o papel que até então estava em minhas mãos e paguei ao rapaz que me estendeu a nota fiscal.
Passei pelo supermercado a fim de comprar algumas besteiras daquelas bem bestas mesmo. Decidi comprar um chiclete que vem em tubos como se fosse pasta de dente e um desses sucos que vem com mais corante artificial do que com frutas.
Cheguei em casa cansado de não fazer nada e resolvi assistir TV. Liguei. Mudei mais de canal do que prestei atenção, mas tudo bem. Estava ao menos fazendo algo relaxante, para pessoas normais, mas não para pessoas loucas. Decidi que o barulho do controle ao passar de canal me incomodava profundamente e resolvi jogá-lo em direção à televisão. Um estouro. O vidro se partiu em mil pedaços e alguns deles cortaram meu pé ao esquecer que estava descalço e andar sobre os cacos.
Não tinha, em minha casa, nada pra fazer um curativo desses que as mães fazem nos filhos quando se machucam, decidi ir ao hospital. Peguei o elevador até o térreo e esperei alguns minutos para conseguir pegar um táxi a frente do prédio.
O hospital ficava a umas três quadras de casa. Santa Helena, assim era chamado. Logo avistei a sua entrada. Pedi ao motorista que parasse, mas ele pareceu não ter escutado. Repeti educadamente e ele simplesmente não me dava ouvidos. Resolvi dar um tapa em seu ombro para chamar sua atenção e percebi que por baixo daquele monstruoso chapéu de taxista se encontrava João, a desgraça da minha vida.
Ele me olhou rapidamente e retomou a atenção no trânsito. Durante essa ação me saudava como se tivesse sentido minha falta. Desgraçado. Ele estava blefando comigo. Só pode! Decidi perguntar o que ele tem feito desde a última vez que me viu. Uma resposta rápida e fria. Dizia estar trabalhando como taxista há cinco anos.
Quando eu pensava estar tudo resolvido ele me chega com mais problemas. Se ontem a noite ele estava em minha casa e tinha viajado para a Inglaterra, como ele poderia estar trabalhando como taxista?! Afinal, nem dinheiro pra essa viagem ele teria. Meu deus o que está acontecendo comigo?! Questionei-me milhares de vezes em um só segundo, se é que isso é possível.
A cada minuto que se passava ele acelerava cada vez mais o carro, decidi perguntar pra onde estávamos indo, afinal já haviam se passado dez minutos que tínhamos passado em frente ao hospital. Ele me disse consciente que estava me levando à um lugar seguro para uma conversa a sós.
Por um motivo ou por nenhum, mas ambas as possibilidades desconhecidas, acalmei-me em uma fração de segundos. Aquele miserável sentimento de me sentir bem perto de João ainda não havia passado.
Percebi então que passávamos por uma ponte longa, que parecia não ter fim. E percebi também que não vinha nenhum carro em nossa direção ou em direção oposta à nossa. Por um segundo perdi a visão do horizonte. Nesse mesmo segundo a ponte começou a declinar rapidamente. Estávamos a uma velocidade superior a do som e num outro instante a da luz. João começara a rir escandalosamente e então o desespero tomou posse de mim. Comecei a gritar numa altura insuportável e isso junto com o barulho que o carro fazia devido a alta velocidade fez com que os meus ouvidos começassem a sangrar. Meus tímpanos não agüentavam mais a pressão e minha cabeça também não.
João, aparentemente bem saudável, só me disse algumas coisas: “Eu sou nada mais nada menos que tua cabeça lutando contra o que você é e já cansou de ser.”
Estava decidido a fazer o que veio em minha cabeça. Comecei a estrangulá-lo e o carro andava em ziguezague numa velocidade extremamente maior que o normal. De repente João começou a atravessar meus braços e retomou o controle do volante. Enquanto ele tomou o controle a ponte começou a se inclinar até retomar a posição inicial. De repente um clarão repentino tomou conta de tudo e o taxista agora era um português que falava com um sotaque irritante.
Olhei para meus braços e me vi agarrando o vento. Lembrei que no momento do clarão estava em pleno estrangulamento de João. E a história começa a se tornar complexa a partir daqui. Mais complexa ainda quando percebi, pelo retrovisor, o prédio cor de rosa - salmão onde moro e mais adiante vi o hospital. Mas como isso será possível se não faz nem dois minutos que eu estava numa ponte que se declinava a ponto de perder o horizonte de vista, ninguém sabe.
Pedi ao português para me deixar no hospital, paguei-lhe doze reais pela viagem e me apressei em procurar o pronto socorro. Chegando lá, uma dessas enfermeiras obesas e sem jeito começou a cuidar do meu ferimento, mas o que eu mais me surpreendi é que suas mãos eram de fada. Um toque macio e excitante que me fazia entrar em transe. Mesmo depois de ter terminado a sessão eu continuava na posição ideal para mais massagens. Até que ela me avisou verbalmente sobre o término do curativo.
Com o pé enfaixado, resolvi ir andando à minha casa e ao chegar resolvi que tentaria bolar um plano para pegar o safado do João. Comecei a estudar os seus movimentos comigo mesmo. Pensava sozinho em tudo que ele fazia ou deixava de fazer, e estava, agora, decidido a matá-lo. Dormi cedo para não faltar ao trabalho.
Sete horas da manhã, e lá estava eu no meu escritório, pronto para receber ordens dos superiores e dar ordem aos inferiores, que eram minoria. Trabalhei exaustivamente até as quatro da tarde. Comecei a despedir do pessoal e impreterivelmente às quatro horas e quinze minutos, da tarde, eu passava pela porta da frente do prédio, despedindo-me, também, do porteiro.
Durante todo esse exaustivo período de trabalho havia pensado em comprar alguma arma para facilitar na execução do demônio que andava assolando minha vida. Ainda não tinha pensado em como iria esconder o corpo nem nada disso. A essa altura só pensava em matá-lo a sangue frio.
Lembrei que estava havendo uma exposição de armas do outro lado da cidade e resolvi aparecer por lá para tentar conseguir uma pistola, revólver ou algo do gênero.
O local era um salão próprio para exibições que era alugado para qualquer amostra que fosse ocorrer na cidade. O evento estava muito movimentado. Ao conversar com o dono da exposição percebi que não havia venda de armas nessa droga de exposição.
Depois da frustração resolvi passar em um bar próximo ao local da exposição para tomar uma bebida que esquentasse ainda mais o meu sangue. Pedi uma dose dupla de uísque que desceu cortando minha garganta e parou no meu estômago queimando-o, o melhor é que ao mesmo tempo o líquido massageava todo meu corpo, tanto por dentro quanto por fora.
Por milagre de Deus ou do Outro, ao olhar pro lado vi um rapaz manuseando por baixo do seu casaco uma pistola mais conhecida como trinta e oito - que é o calibre da sua bala -. Ele fazia questão de que ninguém a visse. Resolvi me aproximar lenta e imperceptivelmente até que ele me viu próximo demais e escondeu novamente a sua arma.
Preenchi rapidamente um cheque de oitocentos reais e coloquei sobre a palma da sua mão. Só faltava preencher o espaço reservado à assinatura. O rapaz, mal encarado por sinal, olhou bem para trinta e oito, olhou pra minha cara e em um piscar de olhos analisou toda minha roupa para conferir se o cheque poderia haver fundo. Mostrei-lhe a etiqueta de meu terno Le Fontini, uma marca tradicional italiana, e por outro milagre de Deus ou do Outro ele acreditou em mim e como um passe de mágica eu sentia o frio da pistola que roubava meu calor tão rapidamente quanto a água que entra em ebulição.
Assinei o cheque e voltei pra casa tão satisfeito que tinha até me esquecido da distância do bar até o meu apartamento. Foram exatos cinqüenta e dois minutos de caminhada e durante todo esse processo de locomoção eu só pensava em manusear, o mais rápido possível, a minha arma.
Ao chegar em casa, às oito horas e dois minutos da noite, fiquei admirando minha belíssima aquisição por longas e prazerosas duas horas. Pensei até em arriscar um tiro para o céu estando na varanda, mas achei melhor não. Resolvi tomar um banho e deitar para tentar dormir tranquilamente.
A água nunca me pareceu mais gostosa. As gotas quentes pareciam lágrimas de perdão que lavavam minha alma. Desde o dia em que João – Desgraçado! – não apresentou reflexos eu não conseguia entender meus sentimentos, e continuava sem entender esse prazer que eu estava tendo ao tomar banho.
Não queria sair do chuveiro, mas ainda me restava um pouco de consciência ambiental. Sequei-me rapidamente com a toalha e vesti um pijama desses de seda que todo homem tem. Fui á cozinha, tomei um café reforçado e lembrei que não tinha penteado o cabelo. No caminho de volta ao quarto passei pela sala e vi minha arma brilhando. Resolvi deixá-la perto da cama para qualquer ocasião de perigo. Coloquei-a sobre o criado-mudo que fica ao lado do espelho e bem próximo à cama.
Fui ao banheiro pra pegar um pente e voltei ao quarto. Ao chegar à frente do espelho percebi que meu reflexo estava um pouco turvo, como não tinha nenhum problema de vista pensei que o problema pudesse ser o vapor do chuveiro que o tinha embaçado. Mas, para meu espanto, não era só isso. Ao olhar o espelho, atenciosamente, percebi que minha imagem tomava curvas diferentes e mais uma vez João aparecera em minha vida. Fiquei parado por vinte segundos pensando comigo mesmo em matar o desgraçado. O estranho é que tudo que eu fazia parecia só estar invertido, meu reflexo estava similar ao de João.
Caminhava lentamente em direção ao criado-mudo enquanto o endemoninhado ia me rondando e fazendo os mesmos movimentos que eu só que, sempre, em direção contrária. Por dois segundos agi rapidamente e peguei a arma. Ao olhar para o espelho percebi que ele também apontava uma arma pra mim. Cruel e ligeiramente apontei para o estômago do desgraçado e dei-lhe um tiro. Em uma fração de segundos a mais mirei na sua cabeça e atirei mais uma vez. Tinha acertado em pontos não letais, mas ele morreria de hemorragia. Coloquei a mão sobre a cabeça e me senti aliviado, tentei parar o sangue que jorrava de mim, mas já era tarde pra me salvar...
Caetité, 05 de abril de 2009.